Alexandre Teixeira (texto) e Maialu Ferlauto (fotos)
A primeira lembrança que quase todo paulistano crescido nos anos 1980 tem de diálogo com uma parede são os muros pintados com os nomes Juneca e Pessoinha. Isso era parte da paisagem da cidade – e ganhou manchetes policiais quando entrou na mira do então prefeito Jânio Quadros. Com a chegada da década de 1990, a tag gradualmente desapareceu. Pessoinha aposentou o apelido, pendurou as latas de spray e assumiu a respeitável persona do advogado Antônio Pessoa. Mas Osvaldo Junior nunca deixou de ser Juneca. Seguiu carreira no mundo das artes, migrando – para quem aceita a distinção – da pichação para o grafite. “Hoje eu faço de tudo um pouco, na área artística”, diz ele.
Entre suas atividades, está um curso de grafite – sim, isso existe –, que já ministrou para mais de cinco mil alunos. Ele rodou o Brasil dando aulas para a molecada, mas também para diretores de escolas e professores de faculdades interessados em revitalização de espaços escolares. Deu oficinas em unidades do Sesc e atuou junto a secretarias de cultura. “Você não torna um garoto artista apenas com um curso, mas você leva noções de arte, fala do patrimônio urbano, [ensina] que tem alguns monumentos na cidade que, apesar de não gostar, você tem que respeitar”, nota Juneca.
A intenção é educar uma garotada que não tem acesso à arte e, muitas vezes, não tem contato com artistas de rua. Ele mostra as técnicas e conta as histórias da arte urbana e da arte acadêmica. Ao menos uma noção suficiente para que a pessoa com alma de artista exposta àquela conversa possa se interessar e, quem sabe, se manifestar não só por meio do grafite, mas também da música, do rap, da dança, de qualquer arte.
Em paralelo à sua atividade de educador, Juneca está montando uma exposição individual de suas obras para o ano que vem. É uma longa e sinuosa trajetória desde a virada de 1982 para 1983, quando ele e Pessoinha começam a “fazer artes”, num outro sentido. Sair pelas ruas pichando seus nomes nos muros era o que Juneca descreve como uma brincadeira de rua. Tudo começou quando, com apenas 11 anos, ele comprou uma mobilete.
Seu bairro era a Chácara Santo Antônio, na Zona Sul de São Paulo. Seu sonho era ter uma mobilete. Como seus pais não quiseram lhe dar a motinho, Juneca tratou de arrumar trabalho numa loja de conserto e venda de calçados. Depois de ralar por dois anos, comprou uma mobilete usada e passou a circular com Pessoinha – que morava a duas ruas paralelas de distância e era parceiro de bola e colega de colégio – na garupa. Um dia, comprou um spray para dar uns retoques na pintura da mobilete. Com a sobra de tinta, a dupla resolveu, num impulso, escrever seus nomes na Avenida Santo Amaro, onde hoje está o Hospital São Luís.
Sucesso entre os colegas
A estripulia fez sucesso entre colegas da escola, Juneca e Pessoinha gostaram da repercussão e passaram a assinar muros. Primeiro em seu bairro, no Brooklin e no Campo Belo. Aos poucos, à medida que cresciam, iam cada vez mais longe. Quando se deram conta, já estavam pichando no litoral e no interior. Quando Pessoinha fez 18 anos e ganhou um carro, a dupla chegou até Minas Gerais. “Daí pra frente, não paramos mais”, diz Juneca.
Em dado momento, a brincadeira ficou séria, com planejamento. Numa semana, eles iam para a Zona Leste. Na seguinte, ficavam só na Zona Oeste. Se havia um feriado, a programação era especial: “Vamos descer na terça e fazer a Imigrantes e a Praia Grande até Peruíbe”, Juneca, o estrategista, dizia a Pessoinha. “Na quarta, vamos fazer Guarujá e as outras praias no sentido do Litoral Norte.” Assim, a assinatura se espalhou. Não era preciso ir atrás dela. Bastava estar de olhos abertos.
Juneca acredita que escreveu seu nome em muros da cidade milhares de vezes. “Hoje, o cara picha, posta e fica todo mundo sabendo. A gente ficou conhecido pela insistência.” Juneca não imaginava que seria lembrado 40 anos depois “por uma história de moleque”. Sua intenção era ser jornalista ou psicólogo. Não artista. “As coisas simplesmente foram acontecendo”, diz.
Onipresença na cidade
Só quem sabia a identidade da dupla no início eram alguns colegas de colégio. A onipresença da assinatura Juneca e Pessoinha, porém, começou a aguçar a curiosidade da cidade. “Falavam que era uma marca, um político, pontos de drogas, inúmeras histórias”, lembra Juneca. O falatório chamou a atenção da mídia. A ponto de Hebe Camargo ter convidado, no ar, a misteriosa dupla para ir a seu programa. Eles não foram. Passaram anos se recusando a aparecer publicamente. Juneca só foi dar uma primeira entrevista em 1988, para a revista Veja. Depois falou com jornais, como a Folha de S. Paulo. Em uma matéria, revelou que tinha pichado até a cúpula do Congresso Nacional.
Era o último ano do mandato de Jânio Quadros na prefeitura de São Paulo. “Ele ficou louco. Queria que prendessem a gente”, conta Juneca. Durante três meses, o prefeito falava sobre os pichadores toda semana. “Vejamos se picham a cadeia”, dizia ele. “Serão processados com o maior rigor.” Era uma ameaça perigosa, considerando o histórico da PM paulista. “Eles matavam e depois iam saber o que você estava fazendo”, lembra Juneca. No seu caso, porém, o pior que aconteceu foi estar pichando um muro e ver um morador vizinho abrir a janela de casa e disparar vários tiros em sua direção.
Uma vez, Juneca estava na garupa da moto pilotada por Pessoinha, perto do Jockey Club, com umas 15 latas de spray, quando surgiu uma viatura da Rota. Os policiais deram ordem para que parassem e levantassem as mãos. Quando Juneca obedeceu, as latas caíram de sua jaqueta. “O que é isso?”, perguntou um dos PMs. “É pra gente pintar a moto”, ele mentiu.
A história inventada era ruim, mas os policiais não tinham por que suspeitar que o objetivo era escrever em muros. Simplesmente porque ainda não havia pichadores. Os próprios Juneca e Pessoinha não usavam a palavra pichação. “Eu acho que ela vem da política, porque naquela época tinha muito candidato que escrevia o nome em muro. Então se falava em pichação política”, explica ele. “O Maluf tinha o nome escrito até em estrada.” Seja como for, após conferir seus documentos, a Rota os liberou.
Exposição no Masp
Houve reações bem mais positivas à ousadia da dupla. Juneca foi convidado a trabalhar com o artista plástico Maurício Villaça, parceiro de Alex Vallauri na grafitagem pioneira em São Paulo. Logo apareceu uma oportunidade para o grupo fazer uma exposição no Masp. O mote era: “Grafiteiros fazem releituras de artistas famosos”. Juneca recriou um Portinari. Ele ficou dois anos trabalhando com Villaça. Fez com ele a capa do disco Zona Zen, de Rita Lee. Cenários – com muros pichados com a assinatura Juneca e Pessoinha – para a novela Bebê a Bordo, da Globo, que se passava no bairro de Santa Cecília, mas era gravada em estúdios no Rio de Janeiro.
Exposições em São Paulo e em Salvador, uma participação na Eco 92. Pichação, Juneca foi deixando de fazer. Não participou da criação de uma linguagem cifrada para o “pixo” em São Paulo, já mais para o final dos anos 1990. Nem da onda de subir em prédios e pichar cada vez mais alto. “Não era necessário, porque se fosse a qualquer avenida, eu acharia um muro branco.”
Em 1988, quando foi servir o exército, Pessoinha já havia deixado de acompanhar Juneca na pichação. Uma vez iniciado no mundo das artes, Juneca deixou de vez de assinar seu nome em muros e abraçou o grafite como forma de expressão. A diferença, para ele, é que a pichação tem a ver com linguagem, com as letras. E o grafite com a forma, com as cores, com o desenho. Em comum, os materiais e o uso do espaço urbano.
Como grafiteiro, sua escola é a da estêncil-arte de Alex Vallauri – que Juneca conheceu no fim da vida quando trabalhou com Maurício Villaça. O aprendizado nas ruas foi complementado com a formação em artes plásticas na Faculdade São Judas Tadeu.
Juneca se considera realizado com artista, tendo exposto sua obra dentro e fora do Brasil. Lamenta, porém, a falta de união dos artistas urbanos – algo que, a seu ver, vem sendo remediado pelo agitador cultural Kleber Pagu, que articula a categoria. O positivo, para ele, é que os grafiteiros estão mais atuantes do que nunca na cidade. “Tem muito mais pessoas fazendo grafite, e isso é bacana, independentemente da qualidade”, afirma ele. “Eu me sinto um pouco responsável por essa abertura ao grafite na cidade.”
Publicado em: 2025-06-17 11:51:00 | Autor: Alexandre Teixeira |